O bolsonarismo mata

Filipe Mendonca
8 min readJan 19, 2021

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Não é novidade para ninguém que o governo Bolsonaro é uma tragédia em vários sentidos. Isso é especialmente verdade quando olhamos para a política de imunização do governo federal. Temos o pior governo federal possível numa das crises mais complexas da história brasileira, uma tempestade “perfeita”!

São inúmeros exemplos da decadência política e moral que estamos metidos: a absoluta incapacidade do governo federal na aquisição das vacinas, o “confisco das vacinas” do Butantã, os testes apodrecendo em galpões em Guarulhos, a defesa criminosa de tratamentos precoces inexistentes, a inacreditável falta de seringas depois de 10 meses de crise, a espetacularização da aprovação da vacina, a incapacidade absoluta do Pazuello de formular um mísero raciocínio lógico… Enfim, são inúmeros exemplos que podemos citar enquanto o presidente promove aglomerações e ridiculariza o distanciamento social.

Recentemente ouvi uma entrevista interessante da Deisy Ventura, professora titular de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Para ela, quando olhamos para o colapso do sistema de saúde em Manaus, com cenas inacreditáveis de pessoas morrendo por falta de oxigênio, não podemos falar em fracasso. Isso mesmo, por mais contraintuitivo que isso soe, o governo Bolsonaro é um absoluto sucesso na disseminação deliberada do vírus.

Eu concordo com essa leitura. Ninguém pode ser tão incompetente. Bolsonaro e seus ministros atuam de forma deliberada para disseminar o vírus. Neste sentido, Bolsonaro é extremamente competente. Isso está claro desde março de 2020, quando o presidente chamou a coisa toda de “gripezinha”. De lá pra cá, só piorou: histórico de atleta, “não sou coveiro”, “lamento muito”, “precisamos enfrentar a pandemia como homens” em não como maricas!

Enfim, não vou seguir neste caminho. Resta apenas dizer que, por mais questionáveis que possam ser os votos recebidos por Bolsonaro na eleição de 2018, não é mais possível seguir apoiando este governo diante dos ataques praticamente diários à ciência. Quem votou, votou! Mas não dá mais para entender alguém que segue apoiando este governo. Seguir sendo bolsonarista, nesta conjuntura, é um atestado de cumplicidade diante de uma política que, em outros países mais avançados, poderia ser considerada como genocida.

Mas eu gostaria de destacar um aspecto específico dessa tragédia toda. Trata-se do igualmente incompetente Ernesto Araújo e sua política externa e sua fracassada tentativa de importação de vacinas da Índia.

Bom, o que aconteceu foi o seguinte. Diante do anúncio de João Dória de que a vacinação em são Paulo começaria em 25 de janeiro, Bolsonaro resolver correr, como se a pandemia não fosse o bastante para isso.

Diante disso, Bolsonaro chegou a fazer campanha contra a Vacina Coronavac. Por exemplo, ele desmentiu Pazuello quando o Ministério da Saúde anunciou a compra das vacinas do Butantã. “Um manda e outro obedece”, disse Pazuello ao ser questionando sobre o assunto. Bolsonaro chegou ao limite do absurdo quando comemorou a interrupção dos estudos por conta da morte de um voluntário, vitimar de suicídio. Numa live, Bolsonaro chegou a dizer que o suicídio poderia ter sido “efeito colateral da vacina”. Bolsonaro também questionou a “cientificidade” da Coronavac (logo ele, defensor de tratamentos precoces sem qualquer comprovação!). Bolsonaro tripudiou diante o anúncio da eficácia global da Vacina de 50,4%. Por fim, assistimos atônitos Bolsonaro mencionar a frase “apesar da vacina”. Em suma, Bolsonaro sempre plantou dúvidas na cabeça de seus apoiadores e este crime segue em andamento.

A pressão começou ficar maior quando inúmeros países começaram a vacinação antes do Brasil. As imagens de esperança mundo a fora contrastavam com as cenas lamentáveis dos sufocamentos em Manaus. Já são mais de 50 países que iniciaram a vacinação, incluindo a Argentina.

Todos nós sabemos que Bolsonaro tem uma corrida particular contra Alberto Fernández desde a campanha eleitoral no país vizinho. Ver seu desafeto iniciar a imunização antes elevou a pressão pelo início da campanha no Brasil, patrocinada pelo governo federal.

Veja, o objetivo nunca foi a imunização coletiva, a saúde pública: a corrida de Bolsonaro era pela primeira foto, pela primeira dose. Nada mais importa: a quantidade, a logística, a segunda dose… nada importa. Tudo isso é secundário. O objetivo de Bolsonaro e seu ministro da saúde até domingo, dia 18 de janeiro de 2021, era apenas um: vacinar antes do Dória.

Foi neste contexto que Ernesto Araújo recebeu uma missão: auxiliar a Fiocruz na busca por vacinas o mais rápido possível. É aí que a Índia apareceu como uma possível solução para disputa transloucada do presidente brasileiro contra Dória.

As primeiras notícias apareceram no fim de 2020. A pedido da Fiocruz, a Anvisa aprovou na virada do ano a importação de 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca produzidas na Índia pelo Instituto Serum, em caráter excepcional. Em outubro, a Anvisa havia concedido uma autorização semelhante ao instituto Butantã que importou 6 milhões de doses da Coronavac. A condição da Anvisa era que o produto ficasse estocado até a autorização pelo órgão de vigilância.

Mas já no dia 04 de janeiro o plano começou a apresentar problemas. Circulou uma informação (depois desmentida) de que o chefe do Instituto Serum, Adar Poonawalla, havia dito que as exportações não seriam realizadas por pressão do governo indiano, prestes a iniciar sua própria companha de vacinação. Segundo a jornalista Marina Oliveira, no congresso em foco, o governo indiano colocou como condições para que a AstraZeneca recebesse autorização de emergência na Índia a proibição das exportações.

O veto fez com que o ministério das relações exteriores fosse acionado pela Fiocruz. No dia seguinte, dia 05 de janeiro, o Ministério das Relações Exteriores afirmou, em nota, o seguinte: “Está confirmada a importação de 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford produzidas na Índia, com data provável de entrega a partir de meados do corrente mês de janeiro”.

Depois disso, não ouvimos muito sobre a operação. Só no dia 13 o ministério das relações exteriores publicou uma nota à imprensa confirmando a compra das doses indianas e deu detalhes sobre a logística. Segundo a nota, “o voo da empresa aérea Azul […] sairá do Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), às 13h desta quinta-feira (14) com destino ao Recife (PE), de onde partirá direto para a cidade indiana de Mumbai. As vacinas estão previstas para chegar ao Brasil no próximo sábado (16) pelo Aeroporto do Galeão (RJ)”.

A nota termina da seguinte forma: “O sucesso da aquisição das doses junto à matriz britânica e à produtora indiana da vacina demonstra o excelente momento das relações Brasil-Reino Unido e Brasil-Índia e a solidez dos relacionamentos estratégicos que mantemos com esses dois países.”

Mas o avião não decolou. Sem a autorização do governo indiano para a operação, que alegou “problemas logísticos”, a missão foi suspensa e não tem data para acontecer. Os jornais indianos foram mais incisivos: no Hindustan Times, afirmava-se que o Brasil havia se precipitado, anunciando oficialmente uma operação que certamente levaria mais tempo. Já o Times of India afirmou que a prioridade total deveria ser a vacinação dos próprios indianos.

Diante do impasse, no dia 14, Ernesto Araújo telefonou para o chanceler da Índia e reiterou o pedido para importação das doses prontas da vacina. Segundo o Itamaraty, o governo indiano mostrou “boa vontade” em liberar a carga, mas apontou “dificuldades logísticas”, pois o pedido brasileiro ocorreu quando o país estava prestes a iniciar a sua campanha de vacinação contra a covid-19.

No dia 15 o presidente Bolsonaro afirmou que a operação iria atrasar 3 dias por problemas logísticos. O avião deixou Viracopos e pousou em recife, mas nunca partiu para Mumbai. Com o avião parado, o marqueteiro conhecido como “Markinho Show”, assessor informal do Pazuello, teve uma “brilhante” ideia: adesivar o avião com propagandas do governo federal escrito “Brasil Imunizado”, “somos uma só nação”, além do logotipo do governo federal, do SUS e a imagem do Zé Gotinha.

Uma rápida pausa: dias depois (17), Pazuello diria que as aplicação das primeiras doses em São Paulo, minutos depois da aprovação da Coronavac pela Anvisa, deveriam ser entendidas como “ato de marketing”. Irônico, não?

Voltemos.

A trapalhada brasileira ficou mais clara depois. Segundo a CNN, “a Índia relatou a autoridades brasileiras estar receosa com o impacto na opinião pública indiana sobre a remessa das 2 milhões de doses da vacina da Astrazeneca para o Brasil, tendo em vista que eles estão iniciando a campanha de vacinação por lá. Nesse sentido, pediram discrição do governo brasileiro nessa negociação. Mas isso não aconteceu. O governo brasileiro, ao contrário, comemorava o aval da Índia para que a operação fosse feita. A avaliação de autoridades federais é de que houve uma precipitação no processo, que acabou atrapalhando as negociações”.

Diante do impasse, o avião da azul alugado para a missão então retorna para campinas na madrugada do dia 16, para levar cilindros de oxigênio para Manaus.

A operação, portanto, nunca aconteceu e provavelmente nunca concluída (ou, quando for, será irrelevante). Segundo informações do jornal Times of India, autoridades do governo indiano planejam enviar as primeiras doses da vacina contra o coronavírus para seus “vizinhos asiáticos” nas próximas semanas. “A ideia é oferecer as remessas para Nepal, Butão, Bangladesh, Myanmar, Sri Lanka, Afeganistão, Maldivas e Ilhas Maurício como uma forma de diplomacia, garantindo assim que todos consigam iniciar o processo de imunização”, informou o IG.

Foi este o contexto do pedido da “confisco” do Ministério da Saúde das 6 milhões de doses da Coronavac em São Paulo. Veja, se fosse uma questão de logística, de saúde pública, o planejamento logístico já estaria pronto. Mas o pedido chegou só no fim de semana depois da negativa do governo indiano.

O que podemos tirar dessa história toda?

1-) O acordo com o governo indiano de fato existiu. Acontece que, da parte brasileira, vimos uma total incapacidade de tocar uma negociação bilateral sensível sem fazer alarde. Isso reitera um ponto que afirmei no início: Bolsonaro não tem interesse na imunização, mas só na primeira foto. Enquanto o governo indiano pedia discrição, o Brasil adesivava seu avião. Uma fez malograda a compra das doses indianas, o governo confiscou as vacinas Coronavac (incluindo a cota paulista).

2-) Não temos uma política externa. Somos um párea, algo que, para Ernesto Araújo, é objeto de comemoração. Ernesto Araújo é uma piada de mau gosto internacional. Os acordos firmados com ele não precisam ser cumpridos porque Ernesto Araújo que imponha qualquer respeito. Enresto Araújo é a personificação de nossa política externa: desprovida de propósito, descolada da realidade, sem interlocução alguma. Nossa política externa não tem nada a dizer, e quando diz é ignorada. E quando não é ignorada, é porque virou piada. Em suma, somos um país que se limita ao papel de pedinte no sistema internacional. Ernesto Araújo é dono de um capítulo triste da nossa diplomacia. Uma diplomacia rastejante!

3-) Como nos mostrou Jamil Chade em sua coluna no UOL, Brasília provou um pouco do próprio veneno e esbarrou no “nacionalismo do governo indiano”. Isso porque o governo indiano tem sido pressionado por sua base radical a não exportar as vacinas. Segundo Jamil Chade, “o “nacionalismo de vacinas” da Índia seria a tradução da política de Modi conhecido como “atmanirbhar Bharat”. Ou “Índia resiliente”, uma tradução do “America first” de Trump.” E conclui assim: “Bolsonaro contava com sua boa relação com o presidente indiano para conseguir a liberação das doses. Mas, de uma forma irônica e trágica, descobriu os limites do nacionalismo, o último recurso dos vendedores de ilusão”

Ilusão é uma palavra bastante precisa nesta conjuntura: o nacionalismo vai mostrando seus limites já que a natureza da crise, bem como sua solução, tem características globais. Também é ilusão acreditar que Bolsonaro, que joga a favor do vírus, terá um surto de lucidez e começará a fazer a coisa certa.

De onde menos se espera é de onde não chega nada mesmo.

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Filipe Mendonca
Filipe Mendonca

Written by Filipe Mendonca

Professor de RI & Economia Política Internacional da Universidade Federal de Uberlândia; Podcaster do Chutando a Escada 🌍🎙️✍️

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